sábado, 2 de abril de 2016

Matrizes e Canários

É manhã. Uma brisa leve afaga a cidade, numa carícia com ares de alívio. O dia ainda está se espreguiçando, estendendo seus braços de uma luz amarela sonolenta, iluminando as coisas devagarinho e sem pressa. O cheiro de café mal se eleva no ar, ainda preso dentro dos hálitos dos madrugadores: dos mendigos, dos guardas, dos universitários. 

De repente, num estalar dos dedos do Tempo, o ritmo da vida se atropela. O dia torna-se abarrotado de pés apressados, de suspiros cansados, de resmungares famintos. As salas abafadiças enchem e enchem, logo povoadas pelo arrastar das cadeiras e o estacionar das mochilas. Os professores, protagonistas da manhãs agitadas, começam a repetir o empoeirado ritual de ensinar, abrindo livros e selecionando gizes. Sem perceber, ou percebendo sem se importar, adotam um peculiar tom de voz, compartilhado na essência de todos eles, que faz ares de padre e juiz, de salmo e sentença.

Então, num sutil passe de mágica, teoremas, corolários e outras entidades etéreas iniciam a tortuosa jornadas rumo aos cérebros incautos dos estudantes. São como gordos coelhos a abandonar cartolas velhas e rotas, a abrir caminho, nem de todo gentilmente, para dentro de cabeças novinhas em folha. Ah! Pobres cabeças que parecem aquecer-se, estagnando o ar da faculdade em desconforto.

O dia passa, agora ligeiro e perpetualmente atrasado, e o calor cresce e cresce, se tornando um corpo vivo e cheio se braços, agarrando tudo a sua volta e devolvendo tudo ao cansaço. Uni-se a eles a cacofonia dos toques rápidos dos gizes nos quadros negros, a melodia do bailar etéreo dos x's, y's e z's, das equações e dos gráficos, dos círculos e das matrizes. Saturados, os alunos se espalham pelas mesas, se recostam nas paredes, e, em seus íntimos secretos, dormem. 

Enquanto isso, na redoma de vidro de onde os gênios prevem a vida, há cálculos sendo criados para desvelar o mundo. Nos corredores labirínticos dessa universidade há salas onde as perguntas são respondidas, as verdades são dissecadas, onde laboriosamente se constrói o Saber. Há ciência, há mudança e há, além de tudo, beleza. Numa faceta escondida dos olhos inertes, aqui pulsa a Matemática, o brinquedo dos gênios: por nós humanos criada e que a nós humanos entretêm.

Mas lá fora, por trás das janelas de grades, das paredes sujas, do labutar em aprender e ensinar, a brisa ainda fresca. Os pássaros salpicam a grama de cores solares. Os canários procuram sementes de capim, saltinhando sem rumo por entres as pedras do calçamento, e cantam, sem propósito e sem pudor. Lá fora, ao menos, nem é preciso desvelar o mundo, só basta vivê-lo.

domingo, 20 de março de 2016

Falemos de Domingo


Há sempre quem fale das Segundas. E quem as odeie, com aquele ódio fervoroso, que nem mesmo ferve tanto assim, mas que sempre reservamos para as entidades incorpóreas, aquelas que não sentem dor, que não causam culpas. O Calor, a Chuva, a Crise, a Dor de Cabeça, o Governo. É simples odiá-las, como é simples odiar as Segundas, com seus recomeços, tropeços, sonos interrompidos e rescaldos de almoços passados. É mais que fácil odiar Segundas, quase um costume, que acabamos por abraçar quase com carinho e que não hesitamos em saudar todas as semanas. No fundo, no fundo, sabemos que gostamos da rotina desse odiar passivo, sem pretensões de ações raivosas, que se contenta com uma reclamação esporádica e um resmungo vez ou outra.

Mas e o Domingo? Por que não falamos dele? Daquele diazinho antes da tão afamada Segunda, aquele final tão final do fim da semana, que nem mais parece dia de folga, que se encolhe com ares de preguiça e enfado. Domingo, o dia da missa na Igreja do bairro, da visita à tia velha no asilo, do churrasco com o cunhado mal-humorado e o avô senil. O mesmo dia que marca a data de lavar carro, de regar a pimenteira seca no jardim, de assistir Fantástico e Faustão. Domingo, o sagrado dia de abarrotar-se com coisas que não queremos que abarrotem outros dias, outras horas, outros momentos – por que esses, mesmo que pobremente, ainda resguardam a possibilidade de guardar acontecimentos felizes, ainda revestem-se de esperança. Ao Domingo, aguardamos sem esperar surpresas, como se já o tivéssemos visto, todo cinza de monotonia.

Ó Domingo, que pobre, que triste, que desesperançoso tu és. Eis nós aqui, a digerir o almoço, a cochilar de preguiça, a sentir calor e canseira. E a pensar no futuro, a planejar a semana, a elaborar regimes e grades de estudo, a tentar apalpar o amanhã. O amanhã que será uma ditosa Segunda, cheia de resmungos e bocejos, que mal sabe que o ontem, ou o hoje, era Domingo, dia de economizar a vida para gastá-la outro momento qualquer.

domingo, 13 de março de 2016

Faculdade é Final Implícito


Final sim, precoce aos 20 e poucos anos, porque o depois é desconhecido, zona embaçada e pálida, como as colinas quase azuis que vão se misturando às nuvens, devagarinho na linha do horizonte. Porque a pergunta que entremeia do nosso jardim de infância ao ginásio - “O que você vai ser quando crescer?” - é sobre o seu futuro curso de graduação, sobre o papel digitado as pressas que levará teu nome junto a um “aprovado”. A vida depois, todos aqueles 40... 50 anos, é território para vidente, astrólogo, previsor das variações da Bolsa... é terra de impalpável cogitação.

E além de final, é final implícito, escondido na mente de cada pai, mãe, tio, primo, professor e, pasme, também na sua. Nesse país de classe média urbana, ir para faculdade é diretriz quase tão arraigada quanto um padrão de decência no anos 50, traçando uma linha rígida e afiada entre o certo e o condenável. Ofendê-lo é quase blasfêmia, tão obscura que a ela é negada até o luxo de ser falada em voz alta. Ai das viagens, descansos, trabalhos... todas justificativas fúteis e frágeis frente ao que a vida deve ser, deve se tornar. Talvez, naquelas deleitáveis realidades de famílias compassivas e abonadas, você possa conseguir um ano ou dois de manobra, mas não se engane, o fim já está definido. 

sábado, 12 de março de 2016

Corpo por Rosa


Sou apenas mais uma louca na estação
Damas me julgam, mocorongas carolas 
Rezando, juntam meu nome a uma oração
Doravante, grito: "Guardem as esmolas"

Os meus amores, onde estão, senhoras?
Eu era outrora, das damas a mais bela
Agora, eu em casos, cacos em penhoras
Mas a lembrança do amor ainda é singela

Ah, venderia meu corpo por uma rosa!
meu sangue: por só mais uma canção
Rasguem-me se preciso, por uma prosa!
Uma palavra basta, para a redenção