quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Janela Diante Um Dúvida Secular

         A lua plúmbea indaga-me de seu banco etéreo: Amor; será real? Meus livros, recheados de lamúrias e declarações, respondem em uníssono: “Sim, nada mais real do que o amor”. Entretanto, não tenho plena fé em livros escritos por poetas cujos olhos insistiam em enxergar beleza em cada minucia que vissem. Já meu espelho, testemunha das olheiras que levo expostas no rosto e das cicatrizes que riscam meu peito, não desmente nem consente; receoso de que o sentimento que fervilha nos corações humanos nem seja próximo ao que tantos poetas tolos descreveram como Amor. Encaro a pena elegante, aquela com que escrevi tantas prosas repletas de amores e sofrimentos fantasiosos e inventados. Por que amor, amor mesmo, desses rubros e fervorosos que arrancam a calma e o sono, acredito que nunca tenha tido. Se senti algo, foi um sentimento que fez aumentar minha afeição por alguém, mas que não passou de um encantamento tolo e efémero. Eu, que apesar dos pesares sou romântica e morrerei sendo, tenho fé que o Amor é algo além de uma tola paixão. Para mim, amor não são provas e declarações ou desejo e obsessão. Amor é quando o menininho agarra a mão da mãe à noite e entre bocejos e pálpebras pesadas de sono sussurra: “Não me deixes”.

sábado, 18 de outubro de 2014

"Cem Vezes Penteados"

       De um lado do espelho, uma escova de madrepérola desliza sobre cabelos ondulados e castanhos. Desce do topo dos fios até as pontas e depois repete o mesmíssimo movimento, como que por encanto. 
       Do outro lado do espelho, olhos arvorais acompanhavam apáticos o movimento da escova.  De tanta preguiça,  migram seu foco para a mão que empunha a escova e observam a tensão dos dedos, a vermelhidão que se alastra pela palma.
     Vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove... É preciso escovar cem vezes, já diziam as boas e elegantes damas da sociedade. "É preciso ter cabelos diariamente cem vezes penteados", assim como é preciso ter dentes bonitos, assim como é preciso casar bem.
        Só não é preciso ter essas olheiras. Ou essa pele já sem vigor. Principalmente, não é preciso ter esses olhos arvorais que seguem apáticos o movimento da escova. 
         Não é preciso sofrer por um amor indecente e incoerente. Não é preciso ser fria e amarga. Não é preciso ser além.
        Além de uma mulher magra, branca e bela. Além de um ser que sorri e é simpático. Além de ter, é claro, cabelos cem vezes penteados.

Embriagar-se

Trôpega, arrasto-me até o balcão da cozinha. Minhas mãos sedentas buscam em vão alento em uma garrafa vazia. Lamúrias arrastam-se pela minha garganta seca e vomito-as junto com doses de conhaque barato. Em um instante lúcido, chego a perceber a cena deprimente em que encontro-me. Vejo com clareza indesejável o estado caótico dos meus cachos castanhos sujos e minhas olheiras fundas de insônia. Entre os acessos de vômito, sorriu de escárnio para mim mesma ou melhor, para o frangalho triste do que sobrou de mim. Em um ataque improvável de vaidade, ajeito a barra rendada do meu vestido preto, ela está suja e rasgada; um triste fim para uma vestido antes tão charmoso. Sou como este velho vestido, sou um tecido surrado onde adivinha-se os contornos de uma elegância já perdida. E na marcha imparável de um Tempo exorbitante, um dia evoluirei deste resquício de veste a um trapo imundo e descorado. No fim, eu que já fui vestido de festa adornado de caras rendas e joias, não serei mais que um farrapo usado para fins banais e inglórios, tais como limpar janelas ou latrinas."

Janelas & Letras

O som das teclas da máquina de escrever perde-se no vazio da madrugada. O eco, que reside nas paredes claustrofóbicas do meu quarto, transforma o som em uma marcha ritmada. A luz fúnebre de um sol ainda sonolento filtra-se pela vidraça embaçada. Minuto a minuto, letras tortas riscam a página branca, corrompendo a pureza do papel virgem. Hora a hora, novas páginas juntam-se a pilha torta junto a escrivaninha. Depois de dias em que a mesma rotina repete-se, interrogo-me: Valerá a pena? Sinto-me receoso, duvidoso de que minhas palavras valham o esforço. O ato de escrever estas minhas tristezas e decepções é tão vão e inútil… que provavelmente não há de ajudar-me em nada. Afinal, do que adianta gritar para o vazio? Minhas palavras são recebidas por ouvidos surdos e mentes apáticas. Não há leitores, nem mesmo amigos para escutar minhas tempestades. Neste mundo falta tempo, falta paciência, falta delicadeza para aproveitar os prazeres que exigem mais dedicação. Por isso floriculturas e livrarias, lugares feitos para espíritos tenazes, ão de morrer e eu, escritor, ei de morrer junto a elas.

Delírio I

Tinha os pés descalços junto a terra úmida. Sentia as várias texturas do solo coberto por folhas molhadas. Acabava de amanhecer, mas o chão era quente assim como a brisa. Caminhava entre as árvores esparsas de uma floresta. O cheiro era palpável: junção de ervas e outras tantas plantas. No meio dos odores um se destacava: o de folhas eucalipto. O vestido púrpuro de tecidos leves caia-lhe solto no corpo. O vento outonal esvoaçava os panos, formando dois esboços de asas. Teria ela a forma de um anjo, não fosse o pecado nos olhos. Ah, olhos… Azuis como nuvens cerúleas em um céu branco. No movimentar do vestido entre um passo e outro, via-se fragmentos de desenhos negros nos seus ombros, pulsos e pés. Eram palavras, de significados insondáveis e sentidos calamitosos. Podiam formar uma oração, uma confissão ou declaração de amor. Ao certo, ninguém sabe. Antes mesmo do sol pintar o firmamento de laranja, ele já havia se posto entre os cachos do seu cabelo. E pôs-se em toda fúria e ardor, tingindo de rubro os fios curtos e emaranhado. Branco, azul, vermelho e é claro, o róseo do lábios cheios e pequenos. Era uma pintura viva, o retrato de um pecado justificável. Talvez seja só uma miragem minha ou um delírio desgarrado. Ou mais um sonho de ver cara a cara, na forma de ser sólido e concreto, a Poesia."