quinta-feira, 23 de outubro de 2014
Janela Diante Um Dúvida Secular
sábado, 18 de outubro de 2014
"Cem Vezes Penteados"
De um lado do espelho, uma escova de madrepérola desliza sobre cabelos ondulados e castanhos. Desce do topo dos fios até as pontas e depois repete o mesmíssimo movimento, como que por encanto.
Do outro lado do espelho, olhos arvorais acompanhavam apáticos o movimento da escova. De tanta preguiça, migram seu foco para a mão que empunha a escova e observam a tensão dos dedos, a vermelhidão que se alastra pela palma.
Vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove... É preciso escovar cem vezes, já diziam as boas e elegantes damas da sociedade. "É preciso ter cabelos diariamente cem vezes penteados", assim como é preciso ter dentes bonitos, assim como é preciso casar bem.
Só não é preciso ter essas olheiras. Ou essa pele já sem vigor. Principalmente, não é preciso ter esses olhos arvorais que seguem apáticos o movimento da escova.
Não é preciso sofrer por um amor indecente e incoerente. Não é preciso ser fria e amarga. Não é preciso ser além.
Além de uma mulher magra, branca e bela. Além de um ser que sorri e é simpático. Além de ter, é claro, cabelos cem vezes penteados.
Embriagar-se
Trôpega, arrasto-me até o balcão da cozinha. Minhas mãos sedentas buscam em vão alento em uma garrafa vazia. Lamúrias arrastam-se pela minha garganta seca e vomito-as junto com doses de conhaque barato. Em um instante lúcido, chego a perceber a cena deprimente em que encontro-me. Vejo com clareza indesejável o estado caótico dos meus cachos castanhos sujos e minhas olheiras fundas de insônia. Entre os acessos de vômito, sorriu de escárnio para mim mesma ou melhor, para o frangalho triste do que sobrou de mim. Em um ataque improvável de vaidade, ajeito a barra rendada do meu vestido preto, ela está suja e rasgada; um triste fim para uma vestido antes tão charmoso. Sou como este velho vestido, sou um tecido surrado onde adivinha-se os contornos de uma elegância já perdida. E na marcha imparável de um Tempo exorbitante, um dia evoluirei deste resquício de veste a um trapo imundo e descorado. No fim, eu que já fui vestido de festa adornado de caras rendas e joias, não serei mais que um farrapo usado para fins banais e inglórios, tais como limpar janelas ou latrinas."
Janelas & Letras
Delírio I
Tinha os pés descalços junto a terra úmida. Sentia as várias texturas do solo coberto por folhas molhadas. Acabava de amanhecer, mas o chão era quente assim como a brisa. Caminhava entre as árvores esparsas de uma floresta. O cheiro era palpável: junção de ervas e outras tantas plantas. No meio dos odores um se destacava: o de folhas eucalipto. O vestido púrpuro de tecidos leves caia-lhe solto no corpo. O vento outonal esvoaçava os panos, formando dois esboços de asas. Teria ela a forma de um anjo, não fosse o pecado nos olhos. Ah, olhos… Azuis como nuvens cerúleas em um céu branco. No movimentar do vestido entre um passo e outro, via-se fragmentos de desenhos negros nos seus ombros, pulsos e pés. Eram palavras, de significados insondáveis e sentidos calamitosos. Podiam formar uma oração, uma confissão ou declaração de amor. Ao certo, ninguém sabe. Antes mesmo do sol pintar o firmamento de laranja, ele já havia se posto entre os cachos do seu cabelo. E pôs-se em toda fúria e ardor, tingindo de rubro os fios curtos e emaranhado. Branco, azul, vermelho e é claro, o róseo do lábios cheios e pequenos. Era uma pintura viva, o retrato de um pecado justificável. Talvez seja só uma miragem minha ou um delírio desgarrado. Ou mais um sonho de ver cara a cara, na forma de ser sólido e concreto, a Poesia."
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