quinta-feira, 19 de junho de 2014

Era um vez, duas estrelas


        Era noite, fazia frio. O Sono espalhava seu pesado manto sob os homens, mas não há força que cale as estrelas. Uma delas, a grande estrela Nitid bailava em seu banco etéreo quando a pequenina Ellai lhe interrogou em tom de segredo:

-     Onde está a menina com cheiro de poeira de estrelas? Onde está?  A menina-pássaro, a    menina-tempestade, seus olhos por acaso a viram?
-      Ah, aquela menina-flor cujo rosto era apenas lábios e olhos ? Aquela cuja voz era vento?
-      Sim, esta. A menina que alimentava sonhos com botões de rosa.
-      Não sei o certo, tampouco sei o errado. Disseram-me que morreu.
-    Pois um rouxinol que por vezes embaraçou-se no cabelo dela e cantava junto a sua voz sussurrou-me um segredo. Disse-me o pior, disse que se apaixonou.
-    Ah, muito me entristece. Mas uma bruxa um dia me preveniu que o destino dela era perecer por amor. Nasceu marcada com a Palavra. Conte me mais sobre a desventura da menina-nuvem, que ela é cara a mim por ter cantado um louvor sob o luar em meu nome.
-     O rouxinol não disse-me mais nada. Mas um carvalho onde ela entregava-se ao badalar do sono disse que ela sussurrou enquanto dormia que seu amor era de um nobre.
-     Oh, que a Lua a guarde. A pequena menina apaixonou-se pelo Rei?
-     Antes o Rei, que nasceu guerreiro de coração limpo e livre. E pense, a menina de botões, dobradiças e penas amaria um Rei? Não, a menina gosta do singelo, do sutil, do brilho pequeno de pequenos olhos. A menina gosta de "pequenitudes".
-    Pois é verdade. A menina vivia de pés descalços a catar pequenos arremedos de linhas para tecer ninhos de andorinhas. Ela tem um querer profundo, mas atulhado de pequenas coisas. Diga-me sem demora quem fisgou o coração da menina feita de Floresta?
-     Digo-te que ela apaixonou-se pelo Conselheiro do Rei.
-    O Conselheiro?! Aquele que finge-se de bobo da corte e semeia olhos e ouvidos em toda parte?
-     Esse mesmo. Pergunto-me se havia sorte pior para a menina de coração feito de teias de aranha e promessas, coração frágil e efêmero. Apaixonar-se logo por um homem cujos sorrisos são tão falsos quanto fartos.
-      Não merecia destino tal como esse, gostasse daquele que assava pães e verdejava em olhos.
-      E não disse o pior, não contei a ti o ocorrido
-      Ele a traiu? Ele a machucou?
-      Sim e com requintes de crueldade. Disse a menina, pobre menina, que a amava; disse com os olhos. De delírio, ela cantou de amor a cada noite e poetizou os olhos dele a cada dia.
-     Bem disse a bruxa, ela nasceu marcada com a Palavra. Doce menina maldita. Seria um anjo, não fosse o pecado dos olhos.
-    E o Conselheiro, maldito, depois de 7 luas disse amava outra, a amazona nobre que impunha uma espada de ouro.
-       Pobre menina-estrela, seu peito deve sangrar com dores de traição. Sabe onde ela está?
-      Tanto não sei que a ti vim saber dela. Acho que fugiu. Caiu no livro e a história nunca a soltou
-        Dever ter virado rima, alunada como era.
-        Não, um verso
-        Estrofe?
-        Talvez, só talvez, poema.
-        De estrelas, será?

-        Não, de Amor.
(F.A.R.S)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

"A lua lava mais branco"

       
A negra lavadeira tem feições curtidas de sol e boca com poucos dentes e muitos sorrisos. O corpo já anda envergado pelas muitas décadas ajoelhada a beira de riacho, lavando trouxas e trouxas de roupas sujas de suor e terra. As suas mãos, um dia lindas e com maciez de quem espalha carícias, hoje são enrugadas e maculadas pelo sabão de coco que lava até o sangue das brancas camisolas das esposas virgens.

         Acostumada a muito falar, em dias de sol canta a plenos pulmões as cantigas de luxúria e adultério que saem da boca do povo. Canções sem elegância, sem pudor. Como o verdadeiro povo é, rude e sem floreios. Mas canta feliz, canta sem medo. A lavadeira já é velha, mas tem alma jovem, fresca, alva como lençóis recém lavados. A lavadeira cheira a alecrim e consciência leve.

        Em dias em que a necessidade vence o descanso, a lavadeira trabalha a noite. Já dizia as velhas mocorongas: “A lua lava mais branco”. Ajoelhada entre as pedras do riacho, a lavadeira conta com a luz do luar para lavar o fino vestido branco da sinhazinha. Já não canta. Sussurra histórias. Vai dizendo como se o vento escutasse que o Homem é um anjo. Só que um anjo de uma única asa que sozinha não tem o poder de voar. E por isso que o Homem busca companhia, alguém para abraçar e com ajuda de mais uma asa chegar o céu. A lavadeira diz que isso, esse abraço que faz o voo possível, é Amor.

       As palavras vulgares da lavadeira são engolfadas pelo riacho e vão descendo junto a ele. A cada murmúrio da água batendo nas pedras do caminho, as palavras são repetidas e repetidas. “Uma mentira contada mil vezes se torna verdade”. Com asas d’água a palavra roda o mundo. De repente, acende em mim uma pergunta. A historieta da lavadeira é verdade? Na verdade não importa. A verdadeira pergunta, que perturba o sono não é sobre uma lavadeira simples. A pergunta que intriga e instiga é : Será que o Amor, é isso? Uma história contada e recontada, floreada e perfumada, que de tantas vezes repetida já não se sabe se é verdade ou uma mentira?

F.A.R.S

Sobre Trilhos de Trem

         Um senhor, de costas envergadas pelo peso dos anos, caminhava sobre os trilhos do trem. Caminhava e caminhava sentindo embaixo dos pés ora a aspereza de pedras miúdas ora a gélida presença do metal enferrujado. O peso de mil memórias guardadas através de décadas afim envergava suas costas doloridas, tornando o simples respirar torturante. Pobre senhor, repleto de vazios, fadado a não esquecer. Maldita é a memória que deixa aquilo que é doce e feliz voar para céus desconhecidos enquanto prende as angustias em nossas costas. Mesmo assim, o velho continuava a caminhar, executando a tarefa hercúlea de dar o próximo passo.

            Não sei em que parte do caminho, mas quando suas forças sucumbiram a tamanho desgaste ele começou a chorar. Pobre velho, se sentia Atlas a sustentar com as mãos nuas o peso do céu, mas ao contrário do antigo titã ele não trazia consigo apenas o firmamento. Ele levava nas costas seu céu, suas asas, seus pássaros... Levava sonhos queimados e fragmentos de dores passados... Levava seus amigos todos; com a vidas e memórias de cada um. E foi chorando estrada a fora. Suas lágrimas eram recebidas com indiferença pela terra fria, infértil. Tão pequenas eram elas! Os olhos castanhos-esverdeados já não choravam a décadas, pois ele nunca se permitiu chorar, nem cair. Não me admira que as lágrimas rasgassem seus olhos, tornando-se rubras de sangue enquanto caiam gota a gota.

            Oh, se não fosse esse asqueroso silêncio no caminho... Se pelo menos houvesse música ou o calor de vozes humanas! O toque de mãos que se comprimem, o toque de almas que se abraçam. Mas não há, a estrada é lugar frio, silencioso e solitário. Nem lugar a estrada é, é apenas a companhia daqueles que não tem mais ninguém

            E as lágrimas continuaram a cair. A terra já as recebi com carinho, pois agora as lágrimas eram grandes e gordas, com as chuvas de verão. Acredito que daqui à alguns meses há de nascer algo nesta terra. Um árvore, um rosa ou punhado vulgar de capim. Uma coisa é certa, há de nascer algo. A natureza é assim, selvagem, incontrolável, mas dê-lhe algo e ela o devolverá a você no tempo certo. Assim, não a culpo por nos pedir de voltar quando nossos anos se esgotam.

            O velho continua a tecer o seu caminho, molhando a terra e remoendo dores. 

  - F.A.R.S.