quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Meu Moço Verde

 Ah, meu moço verde.
Câmera em punho, pincéis no bolso.
A garoa fria aplaca a sede
E você, o dia insosso.

Sinto seu cheiro de canela,
eucalipto, alecrim.
Vejo-o pela velha janela
E suspiras por mim.

Cabelos em desalinho
Casaco amarrotado
Pensamentos em torvelinho
Sorriso inesperado

   Meu artista desvairado
De ombros sujos de tinta
Sou mulher ao seu lado
Nada mais que menina

sábado, 27 de dezembro de 2014

Delírio II

Amar, eis um pecado justificável. Embriagar-se em olhares alheios, emaranhar-se em mãos que se enlaçam, cair no balanceio de corpos que se envolvem. Tão fácil ceder, tão fácil entregar-se à brisa fresca de uma nova conquista, de um novo flerte. Mil vezes mais doce do que resistir é deixar-se cair em braços sedentos e abraços repletos.

Como numa dança, basta que os corpos se aconcheguem, as cabeças se inclinem, as mãos se toquem e os olhares se cruzem... No mais, tudo não passa de um ritmo comum, que permeia ambos e os move suave e docemente, num embalo de cantiga de ninar. Dance-se e ama-se, quando em dois, quase na mesma cadencia,  no mesmo lânguido deslizar inebriado.

Ah, peca-se sorrindo e sem culpas.

Sobre Ceder

Ceder a ele é como dormir de janela aberta.

No fundo, no fundo sabemos que infinitos são os perigos noturnos que podem se esgueirar rumo aos nossos quartos. Mas superficialmente, que é o que realmente conta, não podemos resistir a dormir ao embalo da brisa fresca, sob a luz das estrelas que de certa forma nos velam.

Todo ele é essa mistura complexa de algo definitivamente prejudicial com algo irresistivelmente agradável. Um doce veneno. Um flerte com o perigo. Seus olhos castanhos escuros, olhos que de tanto eu olhar se tornaram um pouco meus, sussurram promessas, vãs promessas.

Um tanto trêmula, minha mão percorre minha própria face em busca de provas. Não há marcas, mas eles ainda estão . Os vestígios. Os rastros de seu toque acariciando meu rosto. Fecho os olhos e a reencontro: a lembrança dos seus olhos em fendas e do seu sorriso adoravelmente debochado.

O cheiro da memória é forte, inebriante. Lembro-me da forma com que ele se deitou no meu colo, como se o lugar fosse dele por direito. De seus cabelos e da vontade de passar a mão por eles em um afago quase maternal. De sua voz baixa dizendo: “Leia pra mim” enquanto fechava os olhos.

E eu li. Li aquele texto medíocre sobre um tema tão medíocre quanto. Li, enquanto pateticamente segurava-me para não sorrir, sem sucesso. Mas as minhas tentativas frustradas pareciam diverti-lo e então ele sorriu. Sorriu como o bom caçador que era, vendo sua presa ali: indefesa e vulnerável.

E eu, agarrando-me a última centelha sensatez, murmurei: “Tão manipulador...”. Porque eu sabia, sempre soube. Que ele não era de todo bom, de todo puro. Havia muita dissimulação ali, muita lábia, muita malicia. E como qualquer menino mimado, o desejo de conquistar o que não poderia ter.

Mas o amor, queridos, é isso. Ceder. E quando ele disse: “Permita-se acreditar que eu sou só um humano” com olhos queimando por razões insondáveis, eu apenas puder ser sincera. Depois de tudo, eu ainda disse: “Eu acredito, sou a única que sempre acreditará. E isso só fará com que você faça-me de boba”.

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

Janela Diante Um Dúvida Secular

         A lua plúmbea indaga-me de seu banco etéreo: Amor; será real? Meus livros, recheados de lamúrias e declarações, respondem em uníssono: “Sim, nada mais real do que o amor”. Entretanto, não tenho plena fé em livros escritos por poetas cujos olhos insistiam em enxergar beleza em cada minucia que vissem. Já meu espelho, testemunha das olheiras que levo expostas no rosto e das cicatrizes que riscam meu peito, não desmente nem consente; receoso de que o sentimento que fervilha nos corações humanos nem seja próximo ao que tantos poetas tolos descreveram como Amor. Encaro a pena elegante, aquela com que escrevi tantas prosas repletas de amores e sofrimentos fantasiosos e inventados. Por que amor, amor mesmo, desses rubros e fervorosos que arrancam a calma e o sono, acredito que nunca tenha tido. Se senti algo, foi um sentimento que fez aumentar minha afeição por alguém, mas que não passou de um encantamento tolo e efémero. Eu, que apesar dos pesares sou romântica e morrerei sendo, tenho fé que o Amor é algo além de uma tola paixão. Para mim, amor não são provas e declarações ou desejo e obsessão. Amor é quando o menininho agarra a mão da mãe à noite e entre bocejos e pálpebras pesadas de sono sussurra: “Não me deixes”.

sábado, 18 de outubro de 2014

"Cem Vezes Penteados"

       De um lado do espelho, uma escova de madrepérola desliza sobre cabelos ondulados e castanhos. Desce do topo dos fios até as pontas e depois repete o mesmíssimo movimento, como que por encanto. 
       Do outro lado do espelho, olhos arvorais acompanhavam apáticos o movimento da escova.  De tanta preguiça,  migram seu foco para a mão que empunha a escova e observam a tensão dos dedos, a vermelhidão que se alastra pela palma.
     Vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove... É preciso escovar cem vezes, já diziam as boas e elegantes damas da sociedade. "É preciso ter cabelos diariamente cem vezes penteados", assim como é preciso ter dentes bonitos, assim como é preciso casar bem.
        Só não é preciso ter essas olheiras. Ou essa pele já sem vigor. Principalmente, não é preciso ter esses olhos arvorais que seguem apáticos o movimento da escova. 
         Não é preciso sofrer por um amor indecente e incoerente. Não é preciso ser fria e amarga. Não é preciso ser além.
        Além de uma mulher magra, branca e bela. Além de um ser que sorri e é simpático. Além de ter, é claro, cabelos cem vezes penteados.

Embriagar-se

Trôpega, arrasto-me até o balcão da cozinha. Minhas mãos sedentas buscam em vão alento em uma garrafa vazia. Lamúrias arrastam-se pela minha garganta seca e vomito-as junto com doses de conhaque barato. Em um instante lúcido, chego a perceber a cena deprimente em que encontro-me. Vejo com clareza indesejável o estado caótico dos meus cachos castanhos sujos e minhas olheiras fundas de insônia. Entre os acessos de vômito, sorriu de escárnio para mim mesma ou melhor, para o frangalho triste do que sobrou de mim. Em um ataque improvável de vaidade, ajeito a barra rendada do meu vestido preto, ela está suja e rasgada; um triste fim para uma vestido antes tão charmoso. Sou como este velho vestido, sou um tecido surrado onde adivinha-se os contornos de uma elegância já perdida. E na marcha imparável de um Tempo exorbitante, um dia evoluirei deste resquício de veste a um trapo imundo e descorado. No fim, eu que já fui vestido de festa adornado de caras rendas e joias, não serei mais que um farrapo usado para fins banais e inglórios, tais como limpar janelas ou latrinas."

Janelas & Letras

O som das teclas da máquina de escrever perde-se no vazio da madrugada. O eco, que reside nas paredes claustrofóbicas do meu quarto, transforma o som em uma marcha ritmada. A luz fúnebre de um sol ainda sonolento filtra-se pela vidraça embaçada. Minuto a minuto, letras tortas riscam a página branca, corrompendo a pureza do papel virgem. Hora a hora, novas páginas juntam-se a pilha torta junto a escrivaninha. Depois de dias em que a mesma rotina repete-se, interrogo-me: Valerá a pena? Sinto-me receoso, duvidoso de que minhas palavras valham o esforço. O ato de escrever estas minhas tristezas e decepções é tão vão e inútil… que provavelmente não há de ajudar-me em nada. Afinal, do que adianta gritar para o vazio? Minhas palavras são recebidas por ouvidos surdos e mentes apáticas. Não há leitores, nem mesmo amigos para escutar minhas tempestades. Neste mundo falta tempo, falta paciência, falta delicadeza para aproveitar os prazeres que exigem mais dedicação. Por isso floriculturas e livrarias, lugares feitos para espíritos tenazes, ão de morrer e eu, escritor, ei de morrer junto a elas.

Delírio I

Tinha os pés descalços junto a terra úmida. Sentia as várias texturas do solo coberto por folhas molhadas. Acabava de amanhecer, mas o chão era quente assim como a brisa. Caminhava entre as árvores esparsas de uma floresta. O cheiro era palpável: junção de ervas e outras tantas plantas. No meio dos odores um se destacava: o de folhas eucalipto. O vestido púrpuro de tecidos leves caia-lhe solto no corpo. O vento outonal esvoaçava os panos, formando dois esboços de asas. Teria ela a forma de um anjo, não fosse o pecado nos olhos. Ah, olhos… Azuis como nuvens cerúleas em um céu branco. No movimentar do vestido entre um passo e outro, via-se fragmentos de desenhos negros nos seus ombros, pulsos e pés. Eram palavras, de significados insondáveis e sentidos calamitosos. Podiam formar uma oração, uma confissão ou declaração de amor. Ao certo, ninguém sabe. Antes mesmo do sol pintar o firmamento de laranja, ele já havia se posto entre os cachos do seu cabelo. E pôs-se em toda fúria e ardor, tingindo de rubro os fios curtos e emaranhado. Branco, azul, vermelho e é claro, o róseo do lábios cheios e pequenos. Era uma pintura viva, o retrato de um pecado justificável. Talvez seja só uma miragem minha ou um delírio desgarrado. Ou mais um sonho de ver cara a cara, na forma de ser sólido e concreto, a Poesia."

domingo, 17 de agosto de 2014

Deliciosamente Adorável

       Ele tem a beleza do pecado nos olhos, aquele pecado que não se vê e não se toca. O pecado que apenas se pressente, o mesmo que arrepia a pele e traz um sorriso esquivo aos lábios. Tem um quê de pimenta no jeito de sorrir, como quem sabe de um segredo insondável ou como quem está prestes a roubar um beijo. Também há algo especial na forma que ele se curva, na forma como seu corpo se reclina com ares de pássaro e de cisne. Ares de violinista, de bailarino, de desenhista. As mãos são frias, longas, aveludadas; assim como os braços elegantes. Aliás, tudo nele é elegante. Até mesmo o andar, que faz as vezes de bailado etéreo, como se a gravidade mal o tocasse. No fundo, é meio gato e meio lobo, meio criança e meio louco. E artista, enfim. Firme e correto, também. Mas, desvairado e voluntarioso em aroubos eventuais. Bonito tal como as coisas incomprensíveis que instigam  e despertam perguntas. Ele é apenas ele, deliciosamente adorável.

terça-feira, 1 de julho de 2014

Janela para conversa à meia-noite / Sobre dor, escrita e talvez, pássaros

          No tempo da dor, escrever é difícil. Qualquer palavra soa tortuosa, rouca, sem som. A metáfora gerada no meio do sofrimento é forte, brava... poética. Mas só dentro de nós mesmos, dentro de nossas mentes, dos nossos peitos carregados. Fora de nós: seja no papel, na parede ou escrita em letras de vento na voz, ela soa gasta, fútil, clichê. Como é possível tal mudança? Tal distorção? Se o céu for o sofrimento sentido, a dor desgraçada; as palavras escritas são como pássaros de asas arrancadas. Pássaros criados, gerados, desenvolvidos unicamente para voar, mas que por um acaso, engano ou maldição mal chegam a abraçar o vento.

          Mas talvez, só talvez, esse mal seja realmente necessário. É preciso que a dor primeiro passe para que ela seja sentida novamente. Afinal, escrever é fazer doer de novo, romper suturas, revelar fraturas. É ver a feiura da dor não lembrada, mas jamais esquecida. Para escrever talvez seja necessário que, primeiro, as lágrimas caiam, os gritos ecoem e as almas sofram. Pra depois, quando surgir a tão famosa calmaria pós-tempestade, possa-se relembra tudo de novo, mas sem os excessos... De forma igual e diferente. Talvez, só talvez, escrever seja re-doer. 

- F.A.R.S

Verso antigo, roubado de mim mesmo

Era um beija-flor de asa quebrada.
Coisa inútil, capenga,
Desnecessária.

Era um domador de dragões,
num tempo onde dragões
são apenas conto de fada.

Era uma ínfima Realidade.
E uma imensa Fantasia,
embora que desacreditada.

- F.A.R.S

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Era um vez, duas estrelas


        Era noite, fazia frio. O Sono espalhava seu pesado manto sob os homens, mas não há força que cale as estrelas. Uma delas, a grande estrela Nitid bailava em seu banco etéreo quando a pequenina Ellai lhe interrogou em tom de segredo:

-     Onde está a menina com cheiro de poeira de estrelas? Onde está?  A menina-pássaro, a    menina-tempestade, seus olhos por acaso a viram?
-      Ah, aquela menina-flor cujo rosto era apenas lábios e olhos ? Aquela cuja voz era vento?
-      Sim, esta. A menina que alimentava sonhos com botões de rosa.
-      Não sei o certo, tampouco sei o errado. Disseram-me que morreu.
-    Pois um rouxinol que por vezes embaraçou-se no cabelo dela e cantava junto a sua voz sussurrou-me um segredo. Disse-me o pior, disse que se apaixonou.
-    Ah, muito me entristece. Mas uma bruxa um dia me preveniu que o destino dela era perecer por amor. Nasceu marcada com a Palavra. Conte me mais sobre a desventura da menina-nuvem, que ela é cara a mim por ter cantado um louvor sob o luar em meu nome.
-     O rouxinol não disse-me mais nada. Mas um carvalho onde ela entregava-se ao badalar do sono disse que ela sussurrou enquanto dormia que seu amor era de um nobre.
-     Oh, que a Lua a guarde. A pequena menina apaixonou-se pelo Rei?
-     Antes o Rei, que nasceu guerreiro de coração limpo e livre. E pense, a menina de botões, dobradiças e penas amaria um Rei? Não, a menina gosta do singelo, do sutil, do brilho pequeno de pequenos olhos. A menina gosta de "pequenitudes".
-    Pois é verdade. A menina vivia de pés descalços a catar pequenos arremedos de linhas para tecer ninhos de andorinhas. Ela tem um querer profundo, mas atulhado de pequenas coisas. Diga-me sem demora quem fisgou o coração da menina feita de Floresta?
-     Digo-te que ela apaixonou-se pelo Conselheiro do Rei.
-    O Conselheiro?! Aquele que finge-se de bobo da corte e semeia olhos e ouvidos em toda parte?
-     Esse mesmo. Pergunto-me se havia sorte pior para a menina de coração feito de teias de aranha e promessas, coração frágil e efêmero. Apaixonar-se logo por um homem cujos sorrisos são tão falsos quanto fartos.
-      Não merecia destino tal como esse, gostasse daquele que assava pães e verdejava em olhos.
-      E não disse o pior, não contei a ti o ocorrido
-      Ele a traiu? Ele a machucou?
-      Sim e com requintes de crueldade. Disse a menina, pobre menina, que a amava; disse com os olhos. De delírio, ela cantou de amor a cada noite e poetizou os olhos dele a cada dia.
-     Bem disse a bruxa, ela nasceu marcada com a Palavra. Doce menina maldita. Seria um anjo, não fosse o pecado dos olhos.
-    E o Conselheiro, maldito, depois de 7 luas disse amava outra, a amazona nobre que impunha uma espada de ouro.
-       Pobre menina-estrela, seu peito deve sangrar com dores de traição. Sabe onde ela está?
-      Tanto não sei que a ti vim saber dela. Acho que fugiu. Caiu no livro e a história nunca a soltou
-        Dever ter virado rima, alunada como era.
-        Não, um verso
-        Estrofe?
-        Talvez, só talvez, poema.
-        De estrelas, será?

-        Não, de Amor.
(F.A.R.S)

quarta-feira, 18 de junho de 2014

"A lua lava mais branco"

       
A negra lavadeira tem feições curtidas de sol e boca com poucos dentes e muitos sorrisos. O corpo já anda envergado pelas muitas décadas ajoelhada a beira de riacho, lavando trouxas e trouxas de roupas sujas de suor e terra. As suas mãos, um dia lindas e com maciez de quem espalha carícias, hoje são enrugadas e maculadas pelo sabão de coco que lava até o sangue das brancas camisolas das esposas virgens.

         Acostumada a muito falar, em dias de sol canta a plenos pulmões as cantigas de luxúria e adultério que saem da boca do povo. Canções sem elegância, sem pudor. Como o verdadeiro povo é, rude e sem floreios. Mas canta feliz, canta sem medo. A lavadeira já é velha, mas tem alma jovem, fresca, alva como lençóis recém lavados. A lavadeira cheira a alecrim e consciência leve.

        Em dias em que a necessidade vence o descanso, a lavadeira trabalha a noite. Já dizia as velhas mocorongas: “A lua lava mais branco”. Ajoelhada entre as pedras do riacho, a lavadeira conta com a luz do luar para lavar o fino vestido branco da sinhazinha. Já não canta. Sussurra histórias. Vai dizendo como se o vento escutasse que o Homem é um anjo. Só que um anjo de uma única asa que sozinha não tem o poder de voar. E por isso que o Homem busca companhia, alguém para abraçar e com ajuda de mais uma asa chegar o céu. A lavadeira diz que isso, esse abraço que faz o voo possível, é Amor.

       As palavras vulgares da lavadeira são engolfadas pelo riacho e vão descendo junto a ele. A cada murmúrio da água batendo nas pedras do caminho, as palavras são repetidas e repetidas. “Uma mentira contada mil vezes se torna verdade”. Com asas d’água a palavra roda o mundo. De repente, acende em mim uma pergunta. A historieta da lavadeira é verdade? Na verdade não importa. A verdadeira pergunta, que perturba o sono não é sobre uma lavadeira simples. A pergunta que intriga e instiga é : Será que o Amor, é isso? Uma história contada e recontada, floreada e perfumada, que de tantas vezes repetida já não se sabe se é verdade ou uma mentira?

F.A.R.S

Sobre Trilhos de Trem

         Um senhor, de costas envergadas pelo peso dos anos, caminhava sobre os trilhos do trem. Caminhava e caminhava sentindo embaixo dos pés ora a aspereza de pedras miúdas ora a gélida presença do metal enferrujado. O peso de mil memórias guardadas através de décadas afim envergava suas costas doloridas, tornando o simples respirar torturante. Pobre senhor, repleto de vazios, fadado a não esquecer. Maldita é a memória que deixa aquilo que é doce e feliz voar para céus desconhecidos enquanto prende as angustias em nossas costas. Mesmo assim, o velho continuava a caminhar, executando a tarefa hercúlea de dar o próximo passo.

            Não sei em que parte do caminho, mas quando suas forças sucumbiram a tamanho desgaste ele começou a chorar. Pobre velho, se sentia Atlas a sustentar com as mãos nuas o peso do céu, mas ao contrário do antigo titã ele não trazia consigo apenas o firmamento. Ele levava nas costas seu céu, suas asas, seus pássaros... Levava sonhos queimados e fragmentos de dores passados... Levava seus amigos todos; com a vidas e memórias de cada um. E foi chorando estrada a fora. Suas lágrimas eram recebidas com indiferença pela terra fria, infértil. Tão pequenas eram elas! Os olhos castanhos-esverdeados já não choravam a décadas, pois ele nunca se permitiu chorar, nem cair. Não me admira que as lágrimas rasgassem seus olhos, tornando-se rubras de sangue enquanto caiam gota a gota.

            Oh, se não fosse esse asqueroso silêncio no caminho... Se pelo menos houvesse música ou o calor de vozes humanas! O toque de mãos que se comprimem, o toque de almas que se abraçam. Mas não há, a estrada é lugar frio, silencioso e solitário. Nem lugar a estrada é, é apenas a companhia daqueles que não tem mais ninguém

            E as lágrimas continuaram a cair. A terra já as recebi com carinho, pois agora as lágrimas eram grandes e gordas, com as chuvas de verão. Acredito que daqui à alguns meses há de nascer algo nesta terra. Um árvore, um rosa ou punhado vulgar de capim. Uma coisa é certa, há de nascer algo. A natureza é assim, selvagem, incontrolável, mas dê-lhe algo e ela o devolverá a você no tempo certo. Assim, não a culpo por nos pedir de voltar quando nossos anos se esgotam.

            O velho continua a tecer o seu caminho, molhando a terra e remoendo dores. 

  - F.A.R.S.